Para quem conhece um pouco a história do martírio de São Sebastião, entenderá o intuito de relacionar essa história que virou referência iconográfica retratada por diversos pintores, escritores, pensadores, como uma metáfora da importância da defesa da arte nos dias de hoje.
"Martírio de São Sebastião", por Gregório Lopes |
São Sebastião serve como ícone de contra cultura. Resumirei sua história: foi morto pelo imperador romano, o mesmo que o designou capitão de sua guarda pessoal (nesse momento ignorando o fato de São Sebastião ser cristão). Quando o imperador percebeu sua conduta afável com os prisioneiros cristãos, subitamente o julgou como traidor e sentenciou sua morte por meio de flechadas em praça pública.
A principal questão abordada na alegoria é: São Sebastião teve a oportunidade de se fingir de não cristão , assim como diversos artistas tiveram a oportunidade de reprimir opiniões e agir de acordo com o modelo imposto, mas audaciosamente preferiram ser eles mesmos e acabaram mal interpretados e rejeitados pelo público.
Frederico Garcia Lorca |
Exemplos não faltam... Entre muitos podemos citar, no cenário da literatura, Frederico Garcia Lorca, poeta e dramaturgo espanhol, que pagou com a vida ao adotar uma postura que incitava sua posição política contra guerra civil espanhola e por explicitamente declarar-se homossexual sendo condenado à prisão por um deputado católico sob o argumento de que seria "mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver". Lorca foi executado de costas (em alusão a sua homossexualidade) sem julgamento e seu corpo foi jogado e nunca encontrado.
Acontece que esse fato desencadeou uma enorme mobilização no mundo todo, eternizando a poesia de Lorca e de milhares de outros que agiam da mesma forma. Ou seja, se não fosse por ele, outro como ele teria que tomar a mesma posição para que algumas coisas mudassem, e diferenças fossem aceitas em nossa sociedade.
No cenário musical, Serge Gainsbourg, segue a mesma linha de artista à frente de sua época. Não é atoa que o ex-presidente francês François Mitterand o rotulou como Baudelaire da música francesa; Serge Gainsbourg realmente elevou a música ao nível da arte. Porém para isso, a superexposição de sua excêntrica personalidade foi inevitável: Primeiramente provou, com suas próprias palavras que "Feiura é de algum modo superior à beleza porque ela dura".
Além de ter conquistado as mais belas mulheres de sua época apenas por ser Serge Gainsbourg, podemos tomar como exemplo essas próprias mulheres, que como ícones de beleza foram sempre conhecidas (Brigitte Bardot e Jane Birkin) hoje em dia envelheceram, fator natural da vida, e vez ou outra são notícia apenas por não possuírem mais aquilo que antes as tornara famosas; enquanto Serge Gainsbourg é eternizado por tudo aquilo que produziu.
Gainsbourg produziu músicas polêmicas, instintivas. Sua atitude ao gravar “Je T'aime Moi Non Plus” pode parecer completamente normal para os dias de hoje, mas quando foi lançada causou a maior repercussão escandalizada, causando rejeição em grande parte das pessoas que ouviam aqueles sussurros aterrorizadas.
Ao gravar uma versão reggae do hino francês, ao mesmo tempo em que satirizava a seriedade com que as pessoas tratavam uma música intitulada hino, que se pararmos pra pensar nada mais é do que uma música como outra qualquer (assim como uma bandeira nada mais é do que um pedaço de pano), levou o reggae para o circuito musical francês, o que ajudou na propagação desse movimento no resto do mundo.
Serge Gainsbourg em Kingston na gravação de seu 13º álbum Aux Armes Et Caetera: Uma mistura franco-reggae-dub que inseriu o ritmo jamaicano no circuito musical francês |
Fez também um álbum conceito otimista sobre a Alemanha nazista, que foi mal visto pelos seus fãs judeus, mas a faixa de abertura do álbum zombava dos soldados nazistas os descrevendo como drag queens dançando na “noite das facas longas”. Resultado: acarretou problemas em sua carreira tanto por parte dos judeus e quanto pelos nazistas.
Gainsbourg queria chocar, queria que a pessoas e a sociedade não se levassem tão a sério. Bebia e fumava constantemente, tanto que na maioria (se não todas) as formas de artes visuais em que é retratado, o cigarro está sempre lá como extensão de seu corpo. Por consequência sofreu sua primeira parada cardíaca aos 45 anos, e como ótimo artista vendedor de sua imagem, chamou a imprensa toda para que tivesses fotos suas numa cama de hospital, alegando que para se curar fumaria e beberia muito mais do que já havia feito até então (o que não era pouco).
“Amanhã vou ser fotografado na cama sofrendo” diz em uma conversa com seu alter ego, que responde “O martírio de São Sebastião!” então completa Gainsbourg “Com vários flashes em vez de flechas” |
Esse diálogo do filme Gainsbourg - O Homem Que Amava as Mulheres retrata bem o ponto de vista de Joann Sfar, e o que quer nos passar em sua cinebiografia, que muito mais é uma bela fábula sobre a vida de Serge Gainsbourg. Um artista genial, que sacrificou sua vida pessoal, sua família, saúde e até seu verdadeiro nome para que o mundo conhecesse seus valores, ideais, as mudanças que careciam o mundo, e outras coisas mais que passavam em sua mente considerada por muitos perturbada.
Gainsbourg pode ser considerado o grande anti-herói da música moderna, o homem comum, que age de acordo com o que acha certo (ou errado), sem ligar pra o que os outros pensam. E que atire a primeira pedra quem não gostaria de viver assim.
A cinebiografia Gainsbourg - O Homem Que Amava as Mulheres estreia dia 8 de julho, próxima sexta-feira , nos cinemas brasileiros. Imperdível.
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